por Luiz Felipe Pondé
filósofo, escritor e docente da PUC-SP e da FAAP
Neste pequeno ensaio pretendo dar uma versão, muito pessoal, do meu encontro com o pensamento conservador na minha experiência de formação.
Mas, antes de mais nada, o que é formação?
Entendo formação, sobretudo, como a preparação para o enfrentamento da condição humana em si mesma. Portanto, o próprio conceito de condição humana é princípio organizador da idéia de formação. Formar-se é encontrar a humanidade em nossa alma: coração e intelecto em agonia reparadora, como diriam muitos pensadores cristãos ortodoxos antigos.
A formação não é o foco principal da educação no mundo contemporâneo, o que é uma pena.
Infelizmente, grande parte da vida acadêmica contemporânea sucumbiu ao medo e à preguiça, a ponto de poder dizer que hoje a educação é um misto de preguiça, oportunismo e medo. Na realidade, uma das idéias que têm dominado meu pensamento é que o medo tornou-se parte essencial da vida de quem se dedica a atividades de formação.
Certa feita, na faculdade de medicina, perguntei ao professor como um paciente portador de câncer terminal se via diante da possibilidade de estar indo em direção ao Nada. O professor foi taxativo: “O senhor está na aula errada, devia fazer filosofia”. Boa época aquela, em que professores não tinham medo dos alunos nem se preocupavam com teorias pedagógicas.
Hoje, já não acho que meu professor estivesse tão certo. A formação em medicina é uma boa chance de você se medir com essa emoção essencial da vida, o medo, enquanto as ciências humanas podem facilmente cultivar a covardia travestida de grandes e vazias aventuras teóricas sem carne ou sangue – e por isso mesmo sem riscos de se sujar com a vida, que está sempre imersa em carne e sangue. Tenho certeza de que grande parte do que penso hoje como filósofo é devida aos cadáveres que abri durante a noite, aos cérebros que espalhei sobre a mesa de metal, às pessoas que morreram pelas mãos de minha ignorância, e à estranha sensação de que algo de misterioso faz a ponte entre a matéria, sempre fracassada, espalhada sobre o metal, e a alma, sempre em espanto.
Vejo o advento da modernidade como se tivéssemos entrado no grande delírio da denegação, da denegação do mal – como os freudianos dizem –, de um modo cultural e universal. Isso criou uma espécie de fúria do homem moderno em se auto-afirmar como centro do universo, uma negação da sua condição.
Mas a formação que daí resultou – grosso modo dos jacobinos para cá – trouxe consigo um esgotamento dos instrumentos intelectuais para compreender o mundo. Simplesmente não tem mais elementos para lidar com o mundo tal como ele se apresenta. E o esforço para lidar com ele, a partir das categorias que temos à mão, é excessivo; por isso, o retorno, a reação perante todas as idéias que não estão alinhadas com esse pensamento, é violento, grosseiro.
Essa dialética sempre me chamou atenção. Eu tinha já uma percepção muito concreta do mal, apesar de não conseguir falar disso, quando estava na faculdade de medicina. Porque, antes de fazer filosofia, fiz medicina; depois, entre uma e outra, ainda quis fazer formação em psicanálise, pensando em salvar a carreira médica, mas depois mudei de idéia.
Quem fez essa passagem para mim foi Pascal. Fui fazer o doutorado em Paris – vinha de cinco anos de estudo, e queria escrever a tese sobre a concepção trágica do ser humano de Freud –, e quando cheguei ali meu orientador foi atropelado por um caminhão na A1 e morreu. Furou um pneu, ele parou no acostamento, abriu a porta, um caminhão passou e o levou. Como se diz em francês, ficamos todos “catastrofados”…
Fiquei órfão de orientador, na primeira semana de doutorado em Paris! E isso criou um vácuo em que comecei a ler outros autores que trabalhavam uma visão trágica. Comecei a ler Pascal, e não parei mais.
Em algum momento em que eu estava trabalhando com ele, alguma coisa começou a virar. Isso mudou completamente a minha forma de ver o mundo; não que tenha perdido de forma alguma a minha herança anterior, científica e biológica – tanto assim que continua presente no meu trabalho –, mas me levou às minhas reflexões atuais.
Devastação e ceticismo
E o que ficou do médico em mim, afinal? A consciência de um fracasso fisiológico essencial como condição humana. Esta experiência de fracasso é minha ontologia do humano.
E por que o medo? Porque conhecer é correr o risco de visitar mundos devastados. Visitar mundos devastados é contemplar a fronteira do sentido das coisas. O ceticismo (a dura suspeita da existência desse fracasso no plano do conhecimento) tem sido evidentemente uma ferramenta essencial.
Ceticismo, para mim, é a vigília contínua sobre este mundo em pedaços. Contra o domínio das teorias abstratas, escolho o risco da vida autoral. A coragem é virtude essencial quando se contempla a devastação.
Qual a relação entre este sentimento de devastação e o encontro com a tradição conservadora? A experiência humana fala de uma ontologia frágil; por isso, antes de tudo, devemos ter cuidado ao lidar com esta fragilidade.
Segundo a fortuna crítica [1], o pensamento conservador tem três grandes raízes, o ceticismo de David Hume (seu “Iluminismo às avessas”), em meados do século XVIII; a crítica de Edmund Burke à Revolução Francesa no final do mesmo século; e a viagem de Alexis de Tocqueville aos Estados Unidos (laboratório da democracia moderna nascente) na primeira metade do século XIX –
mesmo que nenhum dos três autores tenha usado especificamente o termo “conservador” em suas obras. Há controvérsias quanto ao estabelecimento destas origens, mas não vou me ater a elas porque não ferem o conteúdo deste pequeno ensaio.
Segundo Russel Kirk, os termos “conservatif” ou “conservative” [2] surgem na França nos primeiros anos do século XIX para se referir àqueles que se opunham à “era napoleônica” e à sua herança revolucionária. Grosso modo, o ethos da atitude conservadora era preservar as instituições políticas, sociais e morais que estavam no alvo dos desdobramentos de 1789. No limite, tratava-se de combater a dissolução das instituições e dos comportamentos ancestralmente cultivados.
Vemos, portanto, que o foco era uma defesa da sociedade em face da devastação em processo. Reencontramos assim, a oposição entre devastação e conservação a que fiz referência acima.
Este ethos me pareceu significativo [3]. A relação histórico-filosófica entre ceticismo e importância da ancestralidade data da Grécia [4]:
diante da dúvida acerca da operacionalidade da Razão [5], hábitos e costumes se revelam como opção contra o erro. Hábitos e costumes são comportamentos e instituições de razoável sucesso diante das pressões sofridas pela humanidade em sua agonia ancestral.
No restante deste pequeno ensaio, discutirei introdutoriamente alguns traços do que seria um “espírito conservador” ou mesmo uma atitude, ou sensibilidade, ou caráter conservador. Para tal, dialogarei com Russel Kirk em seu The Conservative Mind. Pessoalmente, gosto cada vez mais da idéia de um temperamento conservador [6].
Ao contrário de grande parte das pessoas que se aproximam da tradição conservadora, o que me levou à leitura e ao confronto com esta tradição (ou pelo menos com uma parte significativa dela) não foi qualquer sentimento religioso (apesar de tê-lo), mas sim minha experiência cética. Se não conseguimos justificar racionalmente o mundo (nem moral nem epistemologicamente) e incorremos facilmente em abstrações, como não nos destruímos ainda?
O “temperamento conservador”
1. Os problemas humanos são essencialmente morais e religiosos e não políticos, como pensa a tradição moderna de raiz iluminista francesa. Quando tentamos “resolver” a vida politicamente, incorremos facilmente em simplificações da realidade. A política é bem-vinda quando se apóia nos hábitos e não quando inventa soluções para a vida humana.
No fundo, somos seres atormentados pela falta essencial de sentido das coisas. Esta marca é moral e religiosa, não política. Suspeito que forças maiores do que nosso entendimento seja capaz de compreender marcam nosso destino. Todavia, esta suspeita se materializa muito mais, para mim, na adesão a hábitos que as supõem e as respeitam, do que a rituais que imaginam acessá-las ou abstrações racionais que visam a dissolvê-las.
2. Acredito profundamente na máxima “radicais amam a humanidade e detestam seus semelhantes”. Isso porque esses radicais se relacionam com uma idéia do humano que responde à homogeneidade de uma abstração lógica (suas abstrações de gabinete).
Ao mesmo tempo, tenho uma atração natural (sem sustentá-la em nada que postule uma “dignidade intrínseca do ser humano”) pelos seres humanos reais e sua rica e intratável heterogeneidade. A própria possibilidade de podermos estabelecer uma “lógica definitiva” do ser humano, me tornaria profundamente desinteressado pelos meus semelhantes. Relaciono esta variedade, como diz Kirk, com um certo mistério que perpassa esta multiplicidade.
3. Os seres humanos não são iguais; uns poucos são melhores do que os outros. Estas diferenças demandam tempo pra se revelar, mas são essenciais. A insistência em negar este fato (igualitarianismo) fere a relação entre as pessoas e a organização da vida.
4. Não existe “a liberdade” como idéia, mas apenas formas materiais que evitam a violência de uns sobre os outros. Homens não são ovelhas. No seu limite mínimo, a propriedade privada marca esta materialidade da liberdade possível; por isso, a tentativa de igualdade abstrata fere a defesa concreta contra a violência que visa a destruir a propriedade privada.
5. A famosa frase de Burke sobre a desconfiança para com “sofistas, calculadores e economistas” resume a dúvida conservadora contra designs abstratos da sociedade. Aqui a relação entre dúvida e hábito se revela na sua face mais evidente: engenharias (sofistas, calculadas ou econômicas) sempre põem em risco esse equilíbrio frágil da vida no tempo e no espaço duramente compartilhado. Se duvido dessas engenharias, por conseqüência duvido das mudanças calculadas por elas.
Em conseqüência…
6. Duvido da possibilidade de fabricarmos novos homens pela educação, legislação ou engenharias culturais de qualquer tipo. O homem não é passível de perfectibilidade projetada e acumulativa; daí a recusa da noção de “meliorismo” por parte dos conservadores.
7. Prefiro o conhecimento ancestral às “novidades da Razão”. Radicais desprezam a tradição, optam pelo império do racionalismo. O racionalismo desvaloriza o hábito ancestral em nome de sua força de cálculo. Neste sentido, a religião é preservada contra a sua crítica apressada.
8. A democracia direta é um risco e leva a fúria da sem-razão, travestida de “political levelling”, “nivelamento político”, para o interior do tecido cotidiano.
9. A idéia de justiça social, atacada também por David Hume, é um risco na medida em que dissolve a fronteira entre a violência da liberdade abstrata e o cuidado com esta violência presente na defesa irrestrita da propriedade privada.
10. Por último – resumo da posição burkeana e central para a definição de Kirk –, a sociedade é uma comunidade de alma que reúne os mortos, os vivos e os que ainda não nasceram.
Os mortos são nossa sabedoria ancestral viva na memória e nos hábitos. Os vivos são o presente; diante da insegurança estrutural de nossa Razão, são responsáveis por legar aos ainda não nascidos o cuidado com a vida da humanidade, sob a ameaça ancestral de nossa ontologia do fracasso.
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[1] Muller, J. Z. Conservatism, an Anthology of Social and Political Thought from David Hume to the Present (Princeton University Press, Princeton. 1997). Kirk, R. The Conservative Mind, from Burke to Eliot (Regnery Publishing, Inc., Washington DC. 2001). Id. The Conservative Reader (The Viking Portable Library, New York. 1982).
[2] Kirk, R. Edmund Burke, a Genius Reconsidered (Intercollegiate Studies Institute, Wilmington, 1997).
[3] A dúvida sistemática com relação ao alcance da Razão, marca do ceticismo filosófico, lega um sentimento de grande risco com relação aos malabarismos racionais diante da realidade. A dúvida conservadora de Burke com relação às engenharias sociais herdadas do jacobinismo se aproxima muito desta intuição cética. Ambas tendem a ser econômicas no que se refere à confiança nos produtos concretos destas engenharias (produtos da Razão que pretende moldar o mundo).
[4] Hankinson, R.J. The Sceptics (Routledge, London. 1995).
[5] É importante lembrar, contra o senso comum corrente, que o ceticismo filosófico desde a Grécia, passando por autores como Montaigne (séc. XVI), Pascal (séc. XVII) – naquilo em que ele “usa” o ceticismo -, Hume (séc. XVIII) e Oakeshott (já no século XX), atacam a validade da Razão, e não a validade de crenças ditas “religiosas”. Não porque essas devam ser preservadas, mas porque simplesmente são “fáceis” de ser atacadas (objeto de fé apenas), enquanto a Razão, sim, demonstra sua arrogância dogmática travestida de evidência universal. Por isso é tão comum, como por exemplo em Montaigne e Pascal, o convívio, até certo ponto, entre fé e ceticismo. Em Hume ou Oakeshott (para referências, ver nota 1), a fé está contida no hábito que conduz a vida para fora dos dogmas da Razão frágil. Em Burke, a fé se inscreve na validade da aceitação de uma dimensão de mistério na condução da história (Providência divina opaca à Razão de ethos jacobino).
[6] Não vou aqui citar o texto de Russel Kirk propriamente dito. Remeto o leitor para o The Conservative Mind (para referências, ver nota 1), págs. 8 a 10.
* Publicado na revista Dicta & Contradicta, nº 4.
http://bit.ly/dKgW45
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