Juca e os fora-da-lei (Rouanet)

Postado em 9 de abril de 2009 por Cooperativa Cultural Brasileira

Por Maurício Thuswohl, FNDC

A proposta de mudanças na legislação de incentivo à cultura vem sendo alvo de críticas por parte de setores da elite cultural brasileira. É compreensível. Hoje, 50% dos recursos provenientes de deduções fiscais e destinados à cultura vão parar nas mãos de apenas 3% dos proponentes.

Cinqüenta por cento dos recursos provenientes de deduções fiscais que são destinados à cultura no Brasil vão parar nas mãos de apenas 3% dos proponentes. São quase sempre as mesmas produtoras ou profissionais que se beneficiam desses recursos, num flagrante caso de concentração indevida ou, no mínimo, injusta do incentivo à cultura. Ainda assim, há quem considere correto o sistema atual e reaja de maneira virulenta às tentativas de mudança implementadas pelo governo Lula por intermédio do Ministério da Cultura.

Um dos pontos positivos mais marcantes do atual governo é o trabalho desenvolvido no Ministério da Cultura para dar maiores oportunidades de expressão artística e cultural a regiões e populações culturalmente “ilhadas” ou marginalizadas de norte a sul do Brasil. Neste sentido atuou desde o primeiro momento o ex-ministro Gilberto Gil, que soube enfrentar com coragem e serenidade a onda de protestos e resistência surgida no seu próprio meio, a elite cultural brasileira. Nesse embate, Gil perdeu umas e ganhou outras, mas jamais recuou da intenção de realizar o “Do-in cultural” que prometera ao país assim que assumiu o ministério.

O atual ministro, Juca Ferreira, persevera no caminho da democratização da distribuição dos incentivos à produção cultural. Ciente de que o atual modelo favorece a concentração dos recursos e a formação de “panelinhas”, o Ministério da Cultura elaborou uma série de propostas de alteração na Lei Rouanet, que, nos últimos 18 anos, vem sendo o principal mecanismo de incentivo cultural baseado na renúncia fiscal de empresas. A mudança mais importante é o fim da renúncia fiscal como principal meio de patrocínio e a criação do Fundo Nacional de Cultura, que será dividido em cinco fundos setoriais (Artes, Livro e Leitura, Memória e Patrimônio Cultural, Diversidade Cultural e Fundo de Equalização).

Segundo a proposta do governo, o Fundo Nacional de Cultura terá um comitê gestor, formado por integrantes do Ministério da Cultura e por representantes indicados por organizações da sociedade civil. Esse comitê passaria a ser o principal órgão de decisão sobre a aprovação de projetos culturais e o encaminhamento dos recursos do fundo, fato que representaria uma autêntica revolução, já que atualmente as empresas é que decidem internamente quais projetos vão apoiar.

Essa mudança é o principal motivo da gritaria dos “incomodados” com as alterações na lei propostas por Ferreira. Neste grupo, naturalmente, estão incluídos empresários e diretores de estatais temerosos da perda de prestígio e também determinados artistas e produtores que há três décadas vivem de produções culturais realizadas com recursos públicos e talvez não saibam mais viver sem isso.

No dia 4 de abril, os principais veículos de mídia do país noticiaram um debate organizado na véspera pelo jornal Folha de São Paulo. Frente a um auditório majoritariamente tomado por antipatizantes das propostas de mudança na Lei Rouanet feitas pelo governo, Ferreira foi bombardeado por duas horas numa mesa em que, entre outros, se destacava o secretário estadual de Cultura de São Paulo, João Sayad, enfático ao denunciar “o dirigismo cultural do ministério” e ao defender que “a destinação dos recursos, não tem jeito, tem de ser decidida pelo empresário”.

Segundo o jornal O Globo, “uma das mais irritadas com as mudanças pretendidas pelo governo” era a atriz Beatriz Segall, que teria até mesmo dirigido impropérios ao ministro. Ora, todo mundo sabe que a grande Beatriz é amiga de Sayad e do governador José Serra, a quem já declarou apoio na disputa pela presidência da República! Ao lado de Regina “eu tenho medo” Duarte, de Christiane Torloni e de outras divas menos cotadas, Beatriz Segall nunca escondeu seu repúdio ao governo Lula. Com todo o direito, diga-se de passagem, afinal vivemos numa democracia. Mas, o fato é que todo mundo sabe que Odete Roitman apóia Serra, assim como Flora Fontini apóia Ciro Gomes.

O evento organizado pela Folha foi, portanto, um bem-sucedido jogo de cartas marcadas para produzir manchetes contrárias às mudanças na Lei Rouanet. Apesar da torcida contra, o ministro manteve-se firme e, a meu ver, resumiu tudo numa declaração emblemática: “Eu sabia que a redistribuição desses recursos não seria pacífica. Quem tem acesso evidentemente não quer perder, não quer critério público, não quer critério nenhum, não quer mudança nenhuma porque já tem acesso e conhece o caminho das pedras”.

Juca Ferreira sabe o que está fazendo, e é difícil que recue. Daqui pra frente, cabe ao ministro tornar públicos e transparentes os critérios e os mecanismos de escolha dos integrantes do comitê gestor do Fundo Nacional de Cultura, além de tornar transparente e democrático o processo de indicação dos representantes da sociedade civil. Mais tarde, o Ministério da Cultura terá a obrigação de tornar ainda mais claros os critérios de escolha dos projetos aprovados. Somente isso afastará o fantasma do dirigismo cultural e as críticas oportunistas. Somente isso consolidará as mudanças agora propostas como um significativo avanço para a democratização da cultura no Brasil.

http://www.fndc.org.br/internas.php?p=noticias&cont_key=363552

A Lei Rouanet e o negócio da cultura

Postado em 7 de abril de 2009 por Cooperativa Cultural Brasileira

Por Sérgio de Carvalho e Marco Antonio Rodrigues, Folha de S. Paulo

O debate sobre a extinção da Lei Rouanet tem mobilizado setores importantes da sociedade brasileira. Parte da classe artística, secretários de governo e jornalistas têm assumido o ponto de vista "reformar, sim, acabar, nunca!".

De fato, a Lei Rouanet tem se mostrado uma força miraculosa em seus 17 anos de vida. Basta dizer que mudou a paisagem da avenida Paulista, em São Paulo, ao fazer surgir uma dezena de centros culturais. Curiosamente, instituições com nomes de bancos, que elogiam o espírito abnegado da instituição financeira. Seu nascimento está ligado à caneta do presidente Collor de Mello, em 1991. Tinha, então, um nobre objetivo pré-iluminista: incentivar o mecenato. Só que a aristocracia do passado contratava diversão com recursos do próprio bolso. Já a Lei Rouanet está mais afinada com a cartilha liberal-conservadora de sua época: "O Estado deve intervir o mínimo, a sociedade deve se autogerir, mas, para isso, é preciso uma ajudazinha".

Todo o poder miraculoso da lei tem a ver com seu mecanismo simples: ela autoriza que empresas direcionem valores que seriam pagos como impostos para a produção cultural.

A idéia parece boa, mas contém um movimento nefasto: verbas públicas passam a ser regidas pela vontade privada das corporações, aquelas com lucro suficiente para se valer da renúncia fiscal e investir na área.

Assim, os diretores de marketing dos conglomerados adquirem mais poder de interferir na paisagem cultural do que o próprio ministro da Cultura. E exercem tal poder segundo os critérios do marketing empresarial. O estímulo aos agentes privados resulta em privatismo.

Diante da grandeza do fundo social mobilizado desde 1991 (da ordem de R$ 1 bilhão só no ano de 2007), é possível compreender a gritaria das últimas semanas. Por trás da defesa da Lei Rouanet, há maciços interesses. Não só os das instituições patrocinadoras, que aprenderam a produzir seus eventos culturais, mas os da arte de índole comercial (feita para o agrado fácil), que ganha duas vezes -na produção e na circulação-, na medida em que os ingressos seguem caríssimos.

Os maiores lucros, contudo, ficam com os intermediários. De um lado, as empresas de comunicação, cujos anúncios pagos constituem gigantesca fonte de renda, em média 30% dos orçamentos. De outro, a casta dos "captadores de recursos", gente que embolsou de 10% a 20% do bilhão do ano passado apenas por ter acesso ao cafezinho das diretorias de empresas.

Como não há julgamento da relevância cultural na atribuição dos certificados que habilitam o patrocínio, a lei miraculosa abriu as portas dos nossos teatros às megaproduções internacionais, que ganham mais aqui do que em seus países de origem.

O caso do Cirque du Soleil, com seus R$ 9 milhões de dinheiro público e ingressos a R$ 200, está longe de ser exceção. Ao contrário, é a norma de um sistema em que o Estado se exime de julgar a qualidade em nome do ideal liberal de tratar os agentes desiguais como iguais e "conter o aparelhamento político da cultura".

O pressuposto filosófico do debate foi revelado pelo secretário da Cultura de São Paulo, João Sayad: "Antigamente, numa era religiosa, o natural era a coisa criada por Deus. Hoje, o natural é o que dá lucro".

Ao defender o subsídio contra o mercado excludente, assume a impotência do Estado e endossa a idéia de naturalidade (portanto, imutabilidade) do império do capital sobre qualquer coisa que já se chamou "vida". Uma reforma da Lei Rouanet incapaz de impedir o controle privado de recursos públicos não faz sentido.

O Estado pode estimular a generosidade humanista dos empresários com renúncia fiscal, mas não pode deixar de regular a distribuição do fundo social com regras claras de concorrência pública. Não parece óbvio? Então, por que não enfrentar o debate sobre valores culturais?

Por que contribuir para a universalização da lógica mercantil? O "aparelhamento político da cultura" pode ser questionado em público. O desejo unilateral de um gerente de marketing, não.

Num passado recente, o governo Lula sacrificou seus membros para não enfrentar a tropa de elite da mídia eletrônica. Estava em questão a exigência de "contrapartida social" no patrocínio das estatais.

Sua disposição conciliatória pode, de novo, impedir uma transformação maior, rumo a uma cultura livre, pensada como direito de todos. Mas qualquer mudança exige, no mínimo, considerar a hipótese de que a realidade e o mercado não são uma coisa só.

Reforma, cultura e política pública. Pra começo de conversa

Postado em 6 de abril de 2009 por Cooperativa Cultural Brasileira

Por Guilherme Varella, Cultura e Mercado

A construção do debate em torno da reforma da Lei Roaunet nunca será sólida se não se voltar primeiramente aos alicerces da discussão. Antes de quaisquer elucubrações percentuais e visionárias projeções orçamentárias, o que está em questão aqui são os princípios que devem reger uma política cultural pública e, através dela, a atuação do Estado. Este, o principal responsável pelo fomento da cultura do país e pela garantia do pleno exercício dos direitos culturais por todos os brasileiros.

Para além de seu viés econômico, o que alça a cultura à importância que tem não são os dividendos financeiros que gera. Mas, antes disso e principalmente, o que ela significa para a existência social e simbólica de um povo, cujo direito de produzi-la, consumá-la e acessá-la nunca pode ser negado.

Pelo menos não por quem é responsável para que isso ocorra. No caso, o Estado. E aqui se encontra o cerne de toda a discussão.

Um projeto de lei que disciplina os princípios constitucionais voltados à cultura – e as condições para sua produção, acesso, fruição, difusão e circulação – não é feito para o mercado. Estrategicamente, não quer disciplinar a atuação das empresas, não pretende torná-las mais ou menos competitivas, melhorar sua imagem e nem dizer onde ou porque investir. Um projeto de lei, tal qual se apresenta na reforma, implementando uma política pública de cultura, é feito para o povo. E é a ele que deve interessar. E quem representa o povo não é o empresariado. Quem representa o povo é o Estado, através de governos por ele eleitos e competentes para gerir os recursos dos contribuintes em benefício da coletividade.

O que propõe o projeto de lei que revoga a Rouanet – noves, por ora, fora – é essencialmente o fortalecimento desse papel do Estado, como principal agente responsável pelo fomento da cultura do país. Não em detrimento do mercado, pois não competem em objetivos e finalidades – muitas vezes, diametralmente opostos. Mas em posição de retomada de seu papel constitucionalmente atribuído – pelos primários artigos 215 e 216 – de criar as condições para o pleno exercício dos direitos culturais dos cidadãos. E de como deve destinar a verba pública para o efetivo cumprimento desse dever.

O que se vislumbra é um necessário resgate da função original do Estado, e com ela, dos princípios que devem reger uma política pública de cultura. A alteração central é também simbólica, sintomática. O deslocamento da coluna vertebral do fomento à cultura do privado Mecenato para o público Fundo Nacional de Cultura. Mais que uma mudança programática, é uma quebra de paradigma. Ao se priorizar, na essência, o viés público da ação, o que se faz é propor uma nova cultura política de incentivo e financiamento à cultura.
E na esfera da cultura, não há como negar o poder de uma ação simbólica.

Interesse político

Algumas críticas ao projeto de reforma são calcadas no teor político e ideológico que ela possa ter. Possa não, tem. E é óbvio que tem. Toda ação é política. O próprio surgimento das leis de incentivo à cultura no Brasil encontra fundamento no seu momento político. Tais leis surgem no contexto do avanço neoliberal no país, com a opção pelo enxugamento da atuação social do Estado. Isso da metade da década de 80 em diante. A Lei Sarney – primeira lei brasileira de renúncia fiscal no campo da cultura –, fruto desse cenário, surge em 1986.

A partir da década de 90, com o governo Collor e mais fortemente com FHC, a opção pela entrega de setores estratégicos da administração pública ao setor privado se consolida. Na cultura, surge a Lei Roaunet, criada em 1991 e regulada em 1995. Com ela, o Sistema Nacional de Cultura, que detinha três mecanismos: Ficart, Fundo Nacional de Cultura (FNC) e Mecenato.

O Ficart como investimento privado direto. Nasceu, demorou a engatinhar e com mais de dez anos deu os primeiros passos. Ainda é capenga. O Fundo Nacional de Cultura é o mecanismo propriamente público de recursos para a cultura, aplicados segundo diretrizes previamente definidas para o acesso indistinto aos bens e serviços culturais. E o Mecenato, baseado em renúncia fiscal do IR às empresas que “patrocinarem” projetos culturais, com vantagens que alcançam benefícios de marketing, mídia e relacionamento.

Não há como dizer que a priorização do Mecenato, como principal mecanismo de financiamento à cultura na década de 90 - e depois 2000 -, em detrimento dos outros, especialmente do FNC, foi uma opção natural. Não era a lâmpada que faltava acender na cabeça do empresariado, para que ele começasse a demonstrar financeiramente seu apreço imensurável pela cultura brasileira.

O Mecenato se cristalizou como principal mecanismo de financiamento por representar, na esfera cultural, a lógica da política neoliberal. Lógica de minimização do Estado e ampliação de espaço para a iniciativa privada em setores estratégicos, de responsabilidade original do Estado, como saúde, educação, infra-estrutura. E se deu na cultura através da política de renúncia fiscal.

Daí o questionamento ligeiro: mas a renúncia é um instrumento legal e legítimo de estímulo estatal a determinado setor considerado essencial, carente de financiamento. Sem dúvida. E é válido efetivamente para ração animal no Tocantins, vinho no Rio Grande do Sul, sabonete no Espírito Santo, Coca-Cola no nordeste e ferro-gusa onde quer que o tenha. Para tais “produtos”, o incentivo fiscal faz sentido. Ganha a população, com geração de emprego e renda, e a empresa, com seu santo lucro. Aqui, a lógica mercadológica vale, apesar de se manterem todos os vícios inerentes à sua existência. E não é prejudicial ao desenvolvimento desses setores. Às vezes, pelo contrário, o mecanismo é imprescindível.

E por que seria tão prejudicial à cultura? “Que mal tem em se lucrar com cultura através de dinheiro público?”, já diria o outro. É prejudicial justamente porque bem cultural não é ração animal, sabonete, Coca-Cola, cimento ou ferro-gusa. Para a empresa pode ser. Mas para o Estado, absolutamente não. E se o for, qualquer política pública de cultura é falha e insuficiente.

Cultura e diferenciação dos bens culturais

O bem cultural possui uma especificidade que deve ditar a sua interação com o mercado. Nunca o contrário. E só quem pode regular essa relação é o Estado. Pode se omitir também, como faz quando prioriza o Mecenato. Mas o fato é que não deve, por ter a obrigação de zelar pelos princípios básicos da cidadania cultural. E assim, deve agir de forma positiva e valorativa na implementação de sua política cultural, de modo a dar condições efetivas para o seu acesso e para a produção de todos os indivíduos, em todas as regiões do país.

Primeiramente, é preciso tratar a cultura da maneira mais ampla e diversa, em sua concepção antropológica e histórica, em sua compreensão filosófica, moral, ética e composição simbólica. Os bens culturais, nesse âmbito, são processo e resultado da projeção dos valores de uma sociedade. Sua produção é a própria construção da visão de sua realidade, do poder e das relações em que o indivíduo se insere. São o espelho da realidade desse indivíduo. Espelho que ele mesmo constrói.

E essa carga valorativa é o que determina sua peculiaridade frente aos outros bens. E o que os impede de serem tratados da mesma maneira.

Todo bem regulado juridicamente tem duas características definidoras: um valor pecuniário e a possibilidade de serem apropriáveis individualmente. Isso permite a padronização de tais bens e, assim, sua inserção na lógica de mercado: massificante e de retorno lucrativo. Ocorre que o bem cultural não necessariamente se funda no valor econômico que possui. Muitas vezes nem o tem.

E nem sempre tem uma titularidade definida. Grande parte transcende a propriedade autoral e é fruto da criatividade coletiva, do meio ambiente cultural em que se insere e das relações que o circunda.

Por tudo isso, cultura e os bens culturais têm um sentido amplo, diverso e de tal maneira peculiar, que essa sua diferenciação é determinante na elaboração de uma política pública que os ampare. A Lei Roaunet, como se encontra – forte renúncia fiscal e fundos públicos enfraquecidos -, enquanto principal política de financiamento mantida pelo Estado, faz justamente o contrário.

Impõe aos bens culturais os valores de mercado e, assim, transfere ao ambiente de produção cultural todas as distorções dele decorrentes: a concentração, o privilégio, as desigualdades regionais e o acesso limitado aos recursos e oportunidades.

A renúncia fiscal, no atual estágio do fomento à cultura, é chancelada pelo poder público como principal mecanismo institucional de financiamento. Tal anuência é a efetiva delegação da capacidade de gerir verba pública para as empresas que, segundo seus próprios princípios, vão investir nos projetos que lhes interessarem. A lógica não é portanto do interesse público, mas segue a “política cultural”, “arquitetura” ou “marketing cultural” de cada uma.

Novo modelo

Há 17 anos surgia a Lei Roaunet, como ferramenta de aquecimento do mercado cultural. Anos mais tarde, surge a Lei do Audiovisual, inicialmente temporária, visando à instrumentalização do setor, de maneira que a indústria se tornasse sustentável per si, sem a bengala do Estado através da renúncia. (O mesmo raciocínio serviria para a Lei Roaunet e deve servir, como serve, para qualquer nova lei de incentivo que surja).

Ocorre que, de fato, o mercado se profissionalizou. A economia da cultura gerou recursos, novos profissionais surgiram e o empresariado achou uma nova categoria de investimento indireto. Do ponto de vista das empresas, tudo sob controle. Para estas, a Lei Roaunet permaneceria para sempre. (Apesar de poder acabar, se for verdade o que tanto se propaga: a tamanha evolução e instrumentalização do mercado cultural, e o grande amadurecimento que as empresas alcançaram nesse processo de adolescência de Roaunet.)

No entanto, de acordo com os princípios que devem reger uma política cultural efetivamente pública, os objetivos estão sendo alcançados? Para o acesso irrestrito à produção, difusão, fruição e circulação dos bens culturais; para a promoção da diversidade e cidadania, conforme acordado com a Unesco; para o desenvolvimento social e distribuição de renda; para a participação concreta dos mais variadas manifestações e grupos étnicos de todas as regiões do país; para a valorização e preservação do patrimônio material e imaterial; para o foco não no resultado, mas em todo o processo criativo; não no projeto, mas na continuidade…Enfim, para o alcance de tudo isso, a manutenção desse modelo está se fazendo valer?

Deixemos para um próximo a avaliação dos dados e estatísticas - de ambos os lados e conflitantes entre si. Continuemos na busca de uma análise principiológica, novamente as bases de entendimento do que é esse alcance. Algo relacionado diretamente a como deve ocorrer a atuação do Estado para tanto. E se o modelo vigente assim o permite.

Para o pleno exercício dos direitos culturais, como quer a Constituição, cabe ao Estado rever seu papel nessa “parceria” instituída pelo Mecenato e ir além dos mercados consolidados pelas leis de incentivo à cultura. Com esse novo modelo, uma boa oportunidade se apresenta para a atuação realmente positiva – e não mais omissa – e valorativa do Estado.

Uma atuação que, na avaliação e no estímulo aos programas, projetos e instituições, leve em consideração princípios inadmissíveis pelo mercado, tanto por não trazerem retorno imediato de marketing e/ou lucro quanto por não apresentarem vantagens no seu posicionamento comercial.

Como ressalta Danilo Santos de Miranda, diretor regional de um exemplo de apoio valorativo à cultura, o Sesc -, uma ação que atente para princípios como “a ruptura, a insubmissão, a ousadia, a irreverência, a exigência de qualidade, o ineditismo, o anticonformismo e o antidogmatismo”.
Mais que imprescindível, é um dever constitucional do Estado agir diretamente na promoção cultural. Atuar possibilitando a participação pública em todas as etapas do processo cultural, desde a concepção da obra, até o seu financiamento, supervisão (pois é dinheiro público), consumo e reflexão. Não mais delegar indiscriminadamente essa tarefa ao mercado, pois apenas assim será efetivo na aplicação da mais primária regra da democracia: tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais.

Aliás, sobre a crítica de que um eventual fortalecimento do Estado levará ao inevitável dirigismo, a lição de Michele Anis traz um pouco de lucidez em tempos de obscurantismo. “A intervenção pública na cultura serve para torná-la livre”, explica. Livre não apenas de uma cultura oficial, em que o Estado controle e dirija a produção, a exemplo das ditaduras. Mas livre também de qualquer possibilidade de vinculação das manifestações artísticas aos interesses mercadológicos, restringindo a sua liberdade de criação para atender a anseios comerciais.

Uma política cultural pública deve se servir a atuação estatal para possibilitar, em oportunidades iguais, a participação pública em todas as etapas do processo cultural, desde a concepção da obra, até o seu financiamento, supervisão (pois é dinheiro público), consumo e reflexão.

Antes de temer o risco de um eventual dirigismo estatal, é preciso fazer o diagnóstico nítido de que dirigismo já existe. Com o Mecenato e o modelo vigente da Lei Rouanet, o que existe hoje é o dirigismo do mercado. Um modelo que precisa ser revisado, se não, abolido. Uma nova proposta concreta, apontada desde o início da gestão Gil no Ministério da Cultura, e agora efetivamente apresentada, pode trazer essa oportunidade.

Importa frisar, nesse momento de embate de idéias e proposições, que não bastam alterações superficiais ou pontuais para a correção de todas as mazelas surgidas com a Lei Roaunet. O problema está tão incrustado quanto a lógica dos incentivos fiscais no solo do financiamento à cultura. Mais que aperfeiçoar um sistema falho, é preciso reinventar um novo sistema, calcado em possibilidades mais acessíveis e públicas de fomento e incentivo. Pode ser o momento não de aperfeiçoamento, mas de mudança radical do sistema. Como dito, de paradigma e cultura política. E para isso, as análises e propostas devem ser sistêmicas, abarcar o maior número de pessoas e buscar soluções não setorizadas, mas globais para a problemática.

Fato é que uma política de cultura para um país não pode ser confundida com política cultural empresarial, sob pena de alimentar o contra-senso de que uma política relacionada a um bem público estratégico para o desenvolvimento nacional, a um patrimônio cujo valor relaciona-se com o simbolismo constitutivo do povo, seja uma política voltada apenas a uma classe privilegiada, no pior sentido aristotélico do termo. Um equívoco que desconsidera toda a importância que tem os bens culturais para o desenvolvimento da nação, igualando-os a quaisquer outros produtos de mercado – como ração animal, sabonete, Coca-Cola, cimento e ferro-gusa.

Nova Lei Rouanet prevê "quebra" de direito autoral

Postado em 3 de abril de 2009 por Cooperativa Cultural Brasileira

Por Silvana Arantes, Folha de S. Paulo

A proposta do Ministério da Cultura (MinC) para alterar a Lei Rouanet prevê a suspensão da reserva de direitos autorais dos bens e serviços realizados com benefício da lei (de renúncia fiscal), em favor do governo.

O texto estabelece que, um ano e meio após a realização da obra financiada com recurso público, "a administração pública federal" poderá dispor dela "para fins educacionais".

O embargo é de três anos nos casos em que o uso pelo governo for para "fins não comerciais e não onerosos". Isso permitiria, por exemplo, que a TV Brasil exibisse numa faixa de programação educativa a produção audiovisual feita com incentivo da lei. Quase todos os longas realizados atualmente no país são financiados por meio das leis Rouanet e do Audiovisual.

"Contrassenso"

O secretário-executivo do Ministério da Cultura, Alfredo Manevy, diz que, "uma vez explorado o processo econômico de um bem cultural financiado com dinheiro público, proibir ou limitar o seu acesso numa TV pública ou educacional é um contrassenso que a gente busca sanar com essa medida".

A medida caracteriza-se como "licença compulsória", segundo especialista em direito autoral ouvido pela Folha.

A Lei Rouanet contempla também a edição de livros, a produção de CDs e DVDs musicais, a montagem de espetáculos de artes cênicas e de exposições de artes visuais, entre outros produtos culturais.

O MinC estima que, com o fim da reserva de direitos, o MEC poderá reimprimir, para fins pedagógicos, livros de valor artístico financiados pela lei, mas cuja tiragem é restrita.

Outra mudança significativa no anteprojeto de lei formulado pelo MinC, que está em consulta pública (www.planalto. gov.br/ccivil_03/consulta_ publica/programa_fomento.htm) e é tema de debate que a Folha promove, hoje, com o ministro da Cultura, Juca Ferreira, é o fim da proibição de uso do "mérito artístico" como critério para avaliar os projetos submetidos ao crivo da lei.

Compete ao MinC autorizar (ou negar) a obtenção de recursos via Lei Rouanet --em que o patrocinador aplica em projeto cultural parcela de seu Imposto de Renda devido.

Da forma como é feita hoje, a avaliação dos projetos inscritos na Lei Rouanet --em torno de 9.000 por ano-- obedece apenas critérios técnicos, como a coerência entre seu orçamento e as realizações previstas.

O texto em vigor, de 1991, determina que "os projetos enquadrados nos objetivos desta lei não poderão ser objeto de apreciação subjetiva quanto ao seu valor artístico ou cultural". Esse trecho foi suprimido no anteprojeto do MinC.

Manevy diz que, em nome da objetividade almejada pela atual formulação da lei, "muita coisa sem relevância foi feita" e afirma que "não entrar na discussão sobre a qualidade dos projetos e não premiar os que têm qualificação maior é neutralizar o sistema de avaliação".

Para o secretário-executivo, "a questão da subjetividade é inerente ao processo de avaliação, ainda mais no campo da cultura". O que o governo pretende, diz ele, é que as avaliações se façam com "regras claras, republicanas, com um sistema de contrapesos, para evitar qualquer tipo de dirigismo".

Pelo novo texto, "os critérios de avaliação serão aprovados pela Cnic [Comissão Nacional de Incentivo à Cultura, com número paritário de representantes do governo e da sociedade civil] em até 90 dias antes do início do processo seletivo".

Segundo o MinC, a Lei Rouanet movimentou em 2008 cerca de R$ 1 bilhão. O anteprojeto prevê que a pasta possa utilizar até "5% dos recursos arrecadados" para gerir o uso da lei.

Manevy diz que a medida "vai permitir mais dinamismo" na análise dos projetos inscritos na lei e a "qualificação dos estudos" sobre sua utilização, já que "a Cnic vai ter o poder de decidir, para contratar pareceristas [que avaliem os projetos] e realizar estudos de impacto da lei em determinado setor.

O MinC prevê levar mais 45 dias após o fim da consulta pública --em 6/5-- para arrematar o texto do anteprojeto e encaminhá-lo ao Congresso.

http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u544524.shtml

Impactos da crise

Postado em 2 de abril de 2009 por Cooperativa Cultural Brasileira

Por Eduardo Tristão Girão, Estado de Minas

O grupo formado no início do mês passado por representantes da cena cultural de Belo Horizonte para discutir o futuro do setor frente à crise econômica voltou a se reunir esta semana e anunciou ontem suas primeiras propostas para sobreviver à situação cuja gravidade classifica como “sem precedentes”. Entre as principais reivindicações estão a suspensão, por três meses, da contrapartida de 20% em recursos próprios, prevista na Lei Estadual de Incentivo à Cultura, além de abertura de novos editais das leis estadual e municipal, com resultados previstos para agosto e maio, respectivamente. Também pleiteiam mais recursos das estatais mineiras, criação de fundo emergencial estadual, incentivo das estatais federais com unidades produtivas no estado e abertura de linha de crédito própria.

“A realidade é igual para todos. Existe uma retração muito grande no mercado com a saída abrupta das empresas que fazem financiamento da produção cultural no Brasil. Isso é um fato extremamente grave, que retira o suporte necessário para continuidade do trabalho. Mesmo projetos que estão em andamento há alguns anos são agora ameaçados de não ser realizados. Isso está sendo replicado nacionalmente”, afirma Lúcio Oliveira, da produtora Art BHZ. Para ele, um dos problemas que afligem o setor é a escassez de fontes de pesquisa: “Quando a Embraer demite 4 mil pessoas, isso vira um fato, muito claro para todo mundo ver. Na cultura não é assim. São milhares e milhares de produtores, muitos deles autônomos”.

Tatyana Rubim, da produtora que leva seu sobrenome, avalia que mapear o impacto da crise na cultura por meio de dados é uma ação importante para orientar tendências, assim como ocorre em outros setores. “São Paulo conseguiu com a Fecomércio que esse impacto na indústria cultural fosse medido. Essa pesquisa ainda está sendo estruturada. Dados do IBGE, de 2005, informam que há 1,6 milhão de pessoas trabalhando em empresas culturais, fora artistas e pessoas envolvidas nas tradições culturais do interior”, diz. O produtor cultural Afonso Borges assina embaixo. Nesse sentido, ele acredita que a revitalização da Câmara da Indústria da Cultura (uma das reivindicações do grupo) seria importante para reunir informações sobre o setor.

SEM VERGONHA “A cultura precisa de socorro. Assim como foram feitas reduções de impostos para cimento e indústria de automóveis, o setor carece de tanta atenção quanto os outros da economia brasileira. É preciso que as empresas compreendam que estamos num momento de crise e entrem nesse mutirão de ajuda”, analisa Lúcio Oliveira. Daí as reivindicações que incluem não apenas a extinção temporária da contrapartida de 20% na Lei Estadual de Incentivo à Cultura, mas também a criação de um fundo emergencial estadual com recursos da Cemig/Gasmig, Copasa, BDMG e Codemig, entre outras fontes, e utilização do incentivo com base no ICMS das estatais federais em atividade em Minas, como Petrobras (Regap) e Furnas.

Lúcio Oliveira acrescenta que “a cultura é o único setor que discute renúncia fiscal como se fosse algo do qual a gente tivesse de se envergonhar. Não é a realidade. A renúncia fiscal funciona em todos os setores da economia. Estive em Manaus há menos de um mês e vi que lá a coisa funciona assim há 30 anos. Ninguém reclama disso. Não é privilégio, é direito”, diz ele. Sobre a suspensão dos 20% por tempo determinado, Tatyana informa que o governo do estado está a par do assunto e, no momento, verifica a possibilidade de fazê-lo. Novo encontro entre o grupo e representantes do governo está previsto para discutir o assunto ainda esta semana.

LEI ROUANET Agora, os representantes do setor cultural estão ansiosos para se reunir com o ministro da Cultura, Juca Ferreira. “Tivemos um encontro rápido com ele aqui na cidade e conseguimos entrar na sua agenda. Juca se comprometeu a voltar a BH para dialogar com a classe e esclarecer esse monte de dúvidas que estamos encontrando”, diz o produtor Aluizer Malab. Ele se refere ao teor do novo projeto da Lei Rouanet, cujo texto está no site do ministério desde o início da semana passada e ficará disponível para consulta durante 45 dias. Marcela Bertelli, da Duo Comunicação e Cultura, acredita que o prazo será insuficiente para o debate: “Não é só uma questão de ajustes, é uma nova lógica de financiamento”, afirma.

http://www.uai.com.br/EM/html/sessao_16/2009/04/02/interna_noticia,id_sessao=16&id_noticia=95439/interna_noticia.shtml