Por Guilherme Varella, Cultura e Mercado
A construção do debate em torno da reforma da Lei Roaunet nunca será sólida se não se voltar primeiramente aos alicerces da discussão. Antes de quaisquer elucubrações percentuais e visionárias projeções orçamentárias, o que está em questão aqui são os princípios que devem reger uma política cultural pública e, através dela, a atuação do Estado. Este, o principal responsável pelo fomento da cultura do país e pela garantia do pleno exercício dos direitos culturais por todos os brasileiros.
Para além de seu viés econômico, o que alça a cultura à importância que tem não são os dividendos financeiros que gera. Mas, antes disso e principalmente, o que ela significa para a existência social e simbólica de um povo, cujo direito de produzi-la, consumá-la e acessá-la nunca pode ser negado.
Pelo menos não por quem é responsável para que isso ocorra. No caso, o Estado. E aqui se encontra o cerne de toda a discussão.
Um projeto de lei que disciplina os princípios constitucionais voltados à cultura – e as condições para sua produção, acesso, fruição, difusão e circulação – não é feito para o mercado. Estrategicamente, não quer disciplinar a atuação das empresas, não pretende torná-las mais ou menos competitivas, melhorar sua imagem e nem dizer onde ou porque investir. Um projeto de lei, tal qual se apresenta na reforma, implementando uma política pública de cultura, é feito para o povo. E é a ele que deve interessar. E quem representa o povo não é o empresariado. Quem representa o povo é o Estado, através de governos por ele eleitos e competentes para gerir os recursos dos contribuintes em benefício da coletividade.
O que propõe o projeto de lei que revoga a Rouanet – noves, por ora, fora – é essencialmente o fortalecimento desse papel do Estado, como principal agente responsável pelo fomento da cultura do país. Não em detrimento do mercado, pois não competem em objetivos e finalidades – muitas vezes, diametralmente opostos. Mas em posição de retomada de seu papel constitucionalmente atribuído – pelos primários artigos 215 e 216 – de criar as condições para o pleno exercício dos direitos culturais dos cidadãos. E de como deve destinar a verba pública para o efetivo cumprimento desse dever.
O que se vislumbra é um necessário resgate da função original do Estado, e com ela, dos princípios que devem reger uma política pública de cultura. A alteração central é também simbólica, sintomática. O deslocamento da coluna vertebral do fomento à cultura do privado Mecenato para o público Fundo Nacional de Cultura. Mais que uma mudança programática, é uma quebra de paradigma. Ao se priorizar, na essência, o viés público da ação, o que se faz é propor uma nova cultura política de incentivo e financiamento à cultura.
E na esfera da cultura, não há como negar o poder de uma ação simbólica.
Interesse político
Algumas críticas ao projeto de reforma são calcadas no teor político e ideológico que ela possa ter. Possa não, tem. E é óbvio que tem. Toda ação é política. O próprio surgimento das leis de incentivo à cultura no Brasil encontra fundamento no seu momento político. Tais leis surgem no contexto do avanço neoliberal no país, com a opção pelo enxugamento da atuação social do Estado. Isso da metade da década de 80 em diante. A Lei Sarney – primeira lei brasileira de renúncia fiscal no campo da cultura –, fruto desse cenário, surge em 1986.
A partir da década de 90, com o governo Collor e mais fortemente com FHC, a opção pela entrega de setores estratégicos da administração pública ao setor privado se consolida. Na cultura, surge a Lei Roaunet, criada em 1991 e regulada em 1995. Com ela, o Sistema Nacional de Cultura, que detinha três mecanismos: Ficart, Fundo Nacional de Cultura (FNC) e Mecenato.
O Ficart como investimento privado direto. Nasceu, demorou a engatinhar e com mais de dez anos deu os primeiros passos. Ainda é capenga. O Fundo Nacional de Cultura é o mecanismo propriamente público de recursos para a cultura, aplicados segundo diretrizes previamente definidas para o acesso indistinto aos bens e serviços culturais. E o Mecenato, baseado em renúncia fiscal do IR às empresas que “patrocinarem” projetos culturais, com vantagens que alcançam benefícios de marketing, mídia e relacionamento.
Não há como dizer que a priorização do Mecenato, como principal mecanismo de financiamento à cultura na década de 90 - e depois 2000 -, em detrimento dos outros, especialmente do FNC, foi uma opção natural. Não era a lâmpada que faltava acender na cabeça do empresariado, para que ele começasse a demonstrar financeiramente seu apreço imensurável pela cultura brasileira.
O Mecenato se cristalizou como principal mecanismo de financiamento por representar, na esfera cultural, a lógica da política neoliberal. Lógica de minimização do Estado e ampliação de espaço para a iniciativa privada em setores estratégicos, de responsabilidade original do Estado, como saúde, educação, infra-estrutura. E se deu na cultura através da política de renúncia fiscal.
Daí o questionamento ligeiro: mas a renúncia é um instrumento legal e legítimo de estímulo estatal a determinado setor considerado essencial, carente de financiamento. Sem dúvida. E é válido efetivamente para ração animal no Tocantins, vinho no Rio Grande do Sul, sabonete no Espírito Santo, Coca-Cola no nordeste e ferro-gusa onde quer que o tenha. Para tais “produtos”, o incentivo fiscal faz sentido. Ganha a população, com geração de emprego e renda, e a empresa, com seu santo lucro. Aqui, a lógica mercadológica vale, apesar de se manterem todos os vícios inerentes à sua existência. E não é prejudicial ao desenvolvimento desses setores. Às vezes, pelo contrário, o mecanismo é imprescindível.
E por que seria tão prejudicial à cultura? “Que mal tem em se lucrar com cultura através de dinheiro público?”, já diria o outro. É prejudicial justamente porque bem cultural não é ração animal, sabonete, Coca-Cola, cimento ou ferro-gusa. Para a empresa pode ser. Mas para o Estado, absolutamente não. E se o for, qualquer política pública de cultura é falha e insuficiente.
Cultura e diferenciação dos bens culturais
O bem cultural possui uma especificidade que deve ditar a sua interação com o mercado. Nunca o contrário. E só quem pode regular essa relação é o Estado. Pode se omitir também, como faz quando prioriza o Mecenato. Mas o fato é que não deve, por ter a obrigação de zelar pelos princípios básicos da cidadania cultural. E assim, deve agir de forma positiva e valorativa na implementação de sua política cultural, de modo a dar condições efetivas para o seu acesso e para a produção de todos os indivíduos, em todas as regiões do país.
Primeiramente, é preciso tratar a cultura da maneira mais ampla e diversa, em sua concepção antropológica e histórica, em sua compreensão filosófica, moral, ética e composição simbólica. Os bens culturais, nesse âmbito, são processo e resultado da projeção dos valores de uma sociedade. Sua produção é a própria construção da visão de sua realidade, do poder e das relações em que o indivíduo se insere. São o espelho da realidade desse indivíduo. Espelho que ele mesmo constrói.
E essa carga valorativa é o que determina sua peculiaridade frente aos outros bens. E o que os impede de serem tratados da mesma maneira.
Todo bem regulado juridicamente tem duas características definidoras: um valor pecuniário e a possibilidade de serem apropriáveis individualmente. Isso permite a padronização de tais bens e, assim, sua inserção na lógica de mercado: massificante e de retorno lucrativo. Ocorre que o bem cultural não necessariamente se funda no valor econômico que possui. Muitas vezes nem o tem.
E nem sempre tem uma titularidade definida. Grande parte transcende a propriedade autoral e é fruto da criatividade coletiva, do meio ambiente cultural em que se insere e das relações que o circunda.
Por tudo isso, cultura e os bens culturais têm um sentido amplo, diverso e de tal maneira peculiar, que essa sua diferenciação é determinante na elaboração de uma política pública que os ampare. A Lei Roaunet, como se encontra – forte renúncia fiscal e fundos públicos enfraquecidos -, enquanto principal política de financiamento mantida pelo Estado, faz justamente o contrário.
Impõe aos bens culturais os valores de mercado e, assim, transfere ao ambiente de produção cultural todas as distorções dele decorrentes: a concentração, o privilégio, as desigualdades regionais e o acesso limitado aos recursos e oportunidades.
A renúncia fiscal, no atual estágio do fomento à cultura, é chancelada pelo poder público como principal mecanismo institucional de financiamento. Tal anuência é a efetiva delegação da capacidade de gerir verba pública para as empresas que, segundo seus próprios princípios, vão investir nos projetos que lhes interessarem. A lógica não é portanto do interesse público, mas segue a “política cultural”, “arquitetura” ou “marketing cultural” de cada uma.
Novo modelo
Há 17 anos surgia a Lei Roaunet, como ferramenta de aquecimento do mercado cultural. Anos mais tarde, surge a Lei do Audiovisual, inicialmente temporária, visando à instrumentalização do setor, de maneira que a indústria se tornasse sustentável per si, sem a bengala do Estado através da renúncia. (O mesmo raciocínio serviria para a Lei Roaunet e deve servir, como serve, para qualquer nova lei de incentivo que surja).
Ocorre que, de fato, o mercado se profissionalizou. A economia da cultura gerou recursos, novos profissionais surgiram e o empresariado achou uma nova categoria de investimento indireto. Do ponto de vista das empresas, tudo sob controle. Para estas, a Lei Roaunet permaneceria para sempre. (Apesar de poder acabar, se for verdade o que tanto se propaga: a tamanha evolução e instrumentalização do mercado cultural, e o grande amadurecimento que as empresas alcançaram nesse processo de adolescência de Roaunet.)
No entanto, de acordo com os princípios que devem reger uma política cultural efetivamente pública, os objetivos estão sendo alcançados? Para o acesso irrestrito à produção, difusão, fruição e circulação dos bens culturais; para a promoção da diversidade e cidadania, conforme acordado com a Unesco; para o desenvolvimento social e distribuição de renda; para a participação concreta dos mais variadas manifestações e grupos étnicos de todas as regiões do país; para a valorização e preservação do patrimônio material e imaterial; para o foco não no resultado, mas em todo o processo criativo; não no projeto, mas na continuidade…Enfim, para o alcance de tudo isso, a manutenção desse modelo está se fazendo valer?
Deixemos para um próximo a avaliação dos dados e estatísticas - de ambos os lados e conflitantes entre si. Continuemos na busca de uma análise principiológica, novamente as bases de entendimento do que é esse alcance. Algo relacionado diretamente a como deve ocorrer a atuação do Estado para tanto. E se o modelo vigente assim o permite.
Para o pleno exercício dos direitos culturais, como quer a Constituição, cabe ao Estado rever seu papel nessa “parceria” instituída pelo Mecenato e ir além dos mercados consolidados pelas leis de incentivo à cultura. Com esse novo modelo, uma boa oportunidade se apresenta para a atuação realmente positiva – e não mais omissa – e valorativa do Estado.
Uma atuação que, na avaliação e no estímulo aos programas, projetos e instituições, leve em consideração princípios inadmissíveis pelo mercado, tanto por não trazerem retorno imediato de marketing e/ou lucro quanto por não apresentarem vantagens no seu posicionamento comercial.
Como ressalta Danilo Santos de Miranda, diretor regional de um exemplo de apoio valorativo à cultura, o Sesc -, uma ação que atente para princípios como “a ruptura, a insubmissão, a ousadia, a irreverência, a exigência de qualidade, o ineditismo, o anticonformismo e o antidogmatismo”.
Mais que imprescindível, é um dever constitucional do Estado agir diretamente na promoção cultural. Atuar possibilitando a participação pública em todas as etapas do processo cultural, desde a concepção da obra, até o seu financiamento, supervisão (pois é dinheiro público), consumo e reflexão. Não mais delegar indiscriminadamente essa tarefa ao mercado, pois apenas assim será efetivo na aplicação da mais primária regra da democracia: tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais.
Aliás, sobre a crítica de que um eventual fortalecimento do Estado levará ao inevitável dirigismo, a lição de Michele Anis traz um pouco de lucidez em tempos de obscurantismo. “A intervenção pública na cultura serve para torná-la livre”, explica. Livre não apenas de uma cultura oficial, em que o Estado controle e dirija a produção, a exemplo das ditaduras. Mas livre também de qualquer possibilidade de vinculação das manifestações artísticas aos interesses mercadológicos, restringindo a sua liberdade de criação para atender a anseios comerciais.
Uma política cultural pública deve se servir a atuação estatal para possibilitar, em oportunidades iguais, a participação pública em todas as etapas do processo cultural, desde a concepção da obra, até o seu financiamento, supervisão (pois é dinheiro público), consumo e reflexão.
Antes de temer o risco de um eventual dirigismo estatal, é preciso fazer o diagnóstico nítido de que dirigismo já existe. Com o Mecenato e o modelo vigente da Lei Rouanet, o que existe hoje é o dirigismo do mercado. Um modelo que precisa ser revisado, se não, abolido. Uma nova proposta concreta, apontada desde o início da gestão Gil no Ministério da Cultura, e agora efetivamente apresentada, pode trazer essa oportunidade.
Importa frisar, nesse momento de embate de idéias e proposições, que não bastam alterações superficiais ou pontuais para a correção de todas as mazelas surgidas com a Lei Roaunet. O problema está tão incrustado quanto a lógica dos incentivos fiscais no solo do financiamento à cultura. Mais que aperfeiçoar um sistema falho, é preciso reinventar um novo sistema, calcado em possibilidades mais acessíveis e públicas de fomento e incentivo. Pode ser o momento não de aperfeiçoamento, mas de mudança radical do sistema. Como dito, de paradigma e cultura política. E para isso, as análises e propostas devem ser sistêmicas, abarcar o maior número de pessoas e buscar soluções não setorizadas, mas globais para a problemática.
Fato é que uma política de cultura para um país não pode ser confundida com política cultural empresarial, sob pena de alimentar o contra-senso de que uma política relacionada a um bem público estratégico para o desenvolvimento nacional, a um patrimônio cujo valor relaciona-se com o simbolismo constitutivo do povo, seja uma política voltada apenas a uma classe privilegiada, no pior sentido aristotélico do termo. Um equívoco que desconsidera toda a importância que tem os bens culturais para o desenvolvimento da nação, igualando-os a quaisquer outros produtos de mercado – como ração animal, sabonete, Coca-Cola, cimento e ferro-gusa.
Reforma, cultura e política pública. Pra começo de conversa
Postado em 6 de abril de 2009
por Cooperativa Cultural Brasileira
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