Ecad: nem vilão, nem mocinho, apenas ineficaz

Postado em 25 de abril de 2011 por Cooperativa Cultural Brasileira

Ecad repassou quase R$ 130 mil para falsário por autoria de trilhas sonoras; entre os lesados estão Sérgio Ricardo e Caetano Veloso


Ninguém no Brasil ouviu falar em Milton Coitinho dos Santos, mas, de acordo com o sistema de músicas do Escritório Central de Arrecadação de Direitos (Ecad), ele deveria ser um dos mais prolíferos e conhecidos autores de trilhas sonoras para cinema de que se tem notícia. Suas composições viriam de clássicos dos anos 1960 até comédias recentes deste século.

Ele teria trabalhado com Glauber Rocha, José Mojica Marins e Anselmo Duarte. E, por essas supostas trilhas, foi recompensado. Em 2009, Coitinho recebeu R$ 33.364,87 de direitos autorais do Ecad. Em 2010, foram R$ 94.453,42. No total, o escritório pagou ao "compositor" R$ 127,8 mil pelas exibições de 24 filmes nos últimos dois anos. Só que Coitinho, na realidade, foi o autor de outro tipo de obra: ele representa a maior fraude já descoberta dentro do sistema de distribuição de direitos autorais do Ecad.

O esquema dos pagamentos irregulares começou a vir à tona em novembro do ano passado, de acordo com uma série de documentos e trocas de e-mails aos quais O GLOBO teve acesso. Na ocasião, a União Brasileira dos Compositores (UBC), uma das dez associações que compõem o Ecad, foi questionada sobre os direitos de Sérgio Ricardo em relação à trilha de "Deus e o diabo na Terra do Sol", filme de 1964, de Glauber Rocha. As composições da obra são de Ricardo e do próprio Glauber, mas a trilha foi registrada como de autoria de Coitinho na UBC em 28 de janeiro de 2009.

- Isso é um roubo, é um crime. Imagino que algum funcionário oportunista pegue uma obra sem autor ou com o nome trocado e a registre em seu próprio nome - diz Sérgio Ricardo. - É uma mostra de como o direito autoral no Brasil é desorganizado. As informações são truncadas, nunca se sabe exatamente o que está sendo pago.

Desde 2009, então, trilhas são registradas em nome de Coitinho. Há obras de todos os gêneros e datas. Estiveram associadas a ele, por exemplo, músicas de "O pagador de promessas" (1962), de Anselmo Duarte; "Macunaíma" (1969), de Joaquim Pedro de Andrade; "Finis hominis" (1971), de José Mojica Marins; "Feliz ano velho" (1987), de Roberto Gervitz; "Pequeno dicionário amoroso" (1997), de Sandra Werneck; e "O homem que desafiou o diabo" (2007), de Moacyr Góes.

Em todos, ele aparecia no sistema do Ecad tanto como compositor das obras como seu intérprete. Há casos, como no de "Romance" (2008), longa-metragem de Guel Arraes com trilha de Caetano Veloso, em que ele foi registrado como único autor das músicas. Em outros, os autores verdadeiros eram cadastrados com uma participação menor na trilha, para não levantar suspeitas. As músicas de "Casa da Mãe Joana", de Hugo Carvana, foram feitas por Guto Graça Mello. Mas, na ficha técnica do Ecad, Guto teria tido participação em apenas 1.350 segundos da trilha, enquanto 3.755 segundos seriam de Coitinho.

- Isso me parece um grande golpe de uma equipe. Eu acho que apareceu apenas a ponta de um iceberg. É muito dinheiro envolvido na distribuição de direito autoral no Brasil - afirma Guto.

Os valores pagos por cada filme variam de acordo com sua execução no ano. O rendimento em direito autoral das músicas para "Didi quer ser criança" (2004), de Alexandre Boury e Reynaldo Boury, por exemplo, foi de R$ 33 mil em 2010. Porém, 70% da trilha, de autoria de Mú Carvalho, foram inscritos como sendo de Coitinho.

- Até agora não me pagaram o que é devido. É engraçado como é mais fácil alguém inventar que fez uma música e receber o dinheiro da associação do que o verdadeiro compositor ter o que lhe é de direito - afirma Carvalho. - Sendo elegante, eu posso dizer que o sistema do Ecad é, no mínimo, falho.

O Ecad é o órgão responsável pela arrecadação e distribuição de direitos autorais no Brasil. A arrecadação é feita em rádios, emissoras de TV, casas de festas, blocos de carnaval, restaurantes, consultórios ou qualquer estabelecimento que toque música publicamente. Depois, o valor é distribuído para as dez associações que compõem sua estrutura, cabendo a elas o repasse para autores, herdeiros, editoras e intérpretes. Atualmente, o banco de dados do escritório conta com 2,3 milhões de obras musicais, 71 mil obras audiovisuais e 342 mil titulares de música.

Parte desse banco de dados está disponível para consulta na internet, num sistema chamado Ecadnet. Em entrevista ao GLOBO no início de março, Glória Braga, superintendente executiva do Ecad, explicou que o Ecadnet é um catálogo mais refinado das obras.

- Ali estão músicas nacionais codificadas para um projeto internacional. Elas têm códigos que sofrem validações variadas, refinamentos de tecnologia. São músicas cujas informações podem ser utilizadas em qualquer lugar do mundo com aqueles códigos. Aquilo é menor do que o banco de dados do Ecad. Outras músicas ficam no nosso banco de dados aguardando validação para que sejam postadas no banco de dados mundial. Aquele é um banco de dados refinado, depurado, sem maiores problemas - disse Glória.

Apesar disso, todas as músicas de Coitinho estavam, até a última sexta-feira, no Ecadnet.

O Ecad cortou os repasses para Coitinho em janeiro e agora estuda uma maneira de processá-lo. O problema é encontrar o falsário - se é que ele existe. De acordo com Marisa Gandelman, diretora executiva da UBC, Coitinho registrou as trilhas sonoras no escritório da associação em Minas Gerais. Hoje, porém, não haveria informações sobre seu paradeiro.

Em trocas de e-mails entre representantes de associações, falou-se que ele poderia ter ido para o exterior.
- Ele descobriu uma brecha e agiu de má fé. Qualquer sistema no mundo tem brecha. A própria ideia da autoria de obra artística depende da presunção da verdade do autor, o que já deixa a maior brecha de todas - explica Marisa. - O direito de autor no Brasil é automático, não carece de registro. No caso dos filmes, normalmente a ficha técnica é levada ao sistema com base num documento preparado pelo produtor. Quando a ficha não é catalogada, o dinheiro fica retido até aparecer um titular. O Coitinho se inscreveu como autor de filmes cujas fichas não foram providenciadas. Como não havia outra ficha, o problema não foi logo percebido. Mas só quem faz parte do sistema tem acesso a essas informações.

Outra particularidade no registo autoral brasileiro é que cada uma das dez associações do Ecad tem modelos próprios para registro e não se exige do autor um fonograma da obra.

- Como não existe um método de depósito de fonogramas, a gente não sabe se a obra existe mesmo ou se foi feito um cadastro de má fé. E as associações não checam os cadastros - afirma Juliano Polimeno, diretor executivo da Phonobase, agência de música de São Paulo.

- Na Espanha, a associação Sgae determina que o cadastro de obra seja feito junto com o áudio. Além disso, fora do Brasil existe uma padronização no cadastro. Aqui, o Ecad não tem um padrão - afirma o advogado Daniel Campello Queiroz.

A revelação do esquema de Coitinho coincide com o debate sobre a reforma da Lei do Direito Autoral. Hoje, o projeto que foi preparado pela gestão anterior do Ministério da Cultura (MinC) volta para consulta pública, a fim de receber sugestões até 30 de maio. Diferentemente do que ocorreu em julho do ano passado, quando o MinC fez a primeira consulta, porém, os internautas não terão acesso às contribuições de terceiros.

Um dos pontos mais polêmicos da reforma está, justamente, na necessidade ou não de se criar um ente governamental fiscalizador do Ecad - atualmente, o escritório é autônomo.

Por André Miranda - O Globo

Juliano Mer-Khamis: a arte na guerra contra a opressão e a intolerância

Postado em 20 de abril de 2011 por Cooperativa Cultural Brasileira

Fundador de um teatro para jovens atores na Cisjordânia, ele levou sete tiros de grupo de homens mascarados

Os sete tiros que mataram o ator e diretor Juliano Mer-Khamis, 52, no último dia 4, interromperam a trajetória de um personagem único do conflito palestino-israelense.

Para alguns, insubstituível.

Filho de mãe judia e pai palestino, ele criou o Teatro da Liberdade, um espaço para jovens no campo de refugiados de Jenin, na Cisjordânia ocupada por Israel. Sua morte foi obra de mascarados não identificados, supostamente insatisfeitos com suas críticas duras e frequentes às lideranças dos dois lados. O crime comoveu a opinião pública regional.

Em novembro de 2010, Juliano concedeu longa entrevista à Folha, que estava inédita. Disparou críticas ferozes à ocupação israelense e praticamente previu seu próprio fim.

"Muita gente aqui quer se ver livre de mim."

Folha - Dizem que Jenin trocou as armas pela resistência cultural, a começar pelo seu teatro. A cultura pode vencer a ocupação?

Juliano Mer-Khamis - Isso é uma tremenda bobagem. O teatro talvez possa salvar algumas crianças do desvio e apresentar uma imagem de que somos um povo cultural. Mas no fim das contas não significa nada. Quem lhe disser que a cultura muda alguma coisa está falando bobagem. Que resistência? Não há mais espírito de resistência entre os palestinos e o pouco que resta está sendo corrompido pelos israelenses com dinheiro.

Israel é o único culpado?

Você vê o que está acontecendo em volta. Conseguiram transformar o movimento de resistência numa burocracia corrupta, que engorda com os dólares americanos. Vim para Jenin para lutar contra a ocupação, mas me vi tendo que lutar contra a própria sociedade palestina, que está se tornando tão corrupta que não pode lidar com nenhum tipo de crítica.

Temos uma nova forma de ditadura policial, agora sob comando palestino.

A Autoridade Palestina tem defendido a estratégia de resistência pacífica contra a ocupação. Há chance de isso funcionar?

Não vai dar em nada. É só mais um daqueles gestos bons para os dois lados, mas vazios. Nunca ouvi um caso na história de uma ocupação ter terminado por generosidade do ocupante.

Nós [os palestinos] não temos a capacidade de vencer com armas. É estúpido tentar derrotar a máquina de guerra israelense com um [fuzil] Kalashnikov. Veja aonde chegamos usando armas. O maior desejo dos israelenses é que os palestinos usem armas, para poder justificar suas ações.

Sua identidade dupla lhe ajuda a entender melhor os dois lados?

Minha mãe era judia, meu pai palestino cristão. Pela tradição judaica, sou judeu. Pela tradição cristã, sou cristão. Na prática é o contrário: para os palestinos, sou judeu. Para os israelenses, sou árabe. Ao mesmo tempo não me sinto parte de nenhum dos lados, e acho isso maravilhoso. Quem quer pertencer a essas duas nações? Prefiro ser o outro.

Não estou em Jenin porque morro de amores pelos palestinos. Estou aqui para lutar contra a injustiça. Não sou bem-vindo em Jenin. As pessoas não gostam muito de mim aqui. Primeiro, porque me veem como um judeu. Mas o que mais incomoda é que eu critico a vida que eles levam.

O seu teatro não é uma forma de resistência contra a ocupação israelense?

O teatro não pode resistir a Israel. Isso é uma romantização. O teatro não tem como resistir a um Exército. O que o teatro pode fazer é resistir à opressão, à discriminação, ao racismo, à opressão sexual. Eu vim a Jenin para lutar contra a ocupação, mas logo percebi que isso é besteira. O teatro luta por valores humanos. A ironia amarga é que meu trabalho serve para libertar mulheres que são oprimidas por homens oprimidos por Israel. É por isso que muita gente aqui gostaria de se ver livre de mim.

Por quê?

A Palestina hoje não é um lugar nada amigável. É religioso, conservador, arruinado, corrupto, chauvinista e extremamente racista. Há 15 anos eu achava que havia um espírito de resistência entre os palestinos, um senso de liberdade, de justiça. Hoje isso acabou. Cada um só cuida dos seus interesses.

Fonte: MARCELO NINIO - Folha de São Paulo